
Fogo
no cerrado
Fogo no Cerrado...
e eu com isso?
Uma breve reflexão sobre as relações Cerrado–fogo–homem
e implicações para formulação de políticas
públicas e gestão ambiental no Cerrado
Fernando
Tatagiba
21 de setembro de 2006
Depois
da pequena peleja contra uma queimada que avançava em direção
à chácara onde moramos, no Distrito Federal, achei
que deveria compartilhar algumas considerações sobre
Cerrado, fogo e “nós no meio disso”, feitas
a partir de minhas vivências profissionais e pessoais neste
bioma.
Ao longo de toda sua extensão o Bioma Cerrado pode ser
caracterizado basicamente pela predominância das formações
de cerrado stricto sensu (savanas) na paisagem. Contudo,
o bioma não é formado somente por savanas, também
abrigando formações vegetais que vão de campos
limpos a exuberantes florestas (que podem estar ou não
associadas a cursos d’água). Mas qual seria, então,
o fator responsável pela atual proporção
entre as formações florestais, savânicas e
campestres ao longo do bioma.
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19/09/2006.
Distrito Federal, Granja do Torto, Núcleo Rural Boa Esperança
II. Queimada descontrolada avançando sobre o cerrado em
direção às chácaras do local. |
Atualmente
é amplamente aceito que clima, solos e fogo
são altamente interativos nos seus efeitos sobre a vegetação
no Bioma Cerrado. Apesar de fundamental importância, chuvas sazonais
e baixa fertilidade de solo parecem ser insuficientes para explicar
a presente distribuição da vegetação de
savana ao longo do bioma. Por exemplo, vastas áreas no sudeste
do Brasil com forte sazonalidade pluviométrica e solos com baixos
teores de nutrientes (como o leste de Minas Gerais) têm uma cobertura
contínua de florestas semidecíduas e não são
ocupadas por cerrado.
O
fogo assume, então, papel de fator chave para explicar
a atual proporção entre as diferentes formações
vegetais no bioma. Porém, dizer simplesmente que o fogo
é um componente natural no Cerrado acaba por encobrir o
principal responsável pela sua ocorrência na atualidade:
o próprio homem, e deliberadamente na maior parte dos casos.
- O fogo é natural do Cerrado VÍRGULA - A ocupação
humana na região alterou drasticamente o regime natural
das queimadas (época do ano e freqüência) trazendo
conseqüências para estrutura da vegetação
e sua composição florística. Não
estamos falando aqui somente da ocupação pelos sertanejos
contemporâneos. A literatura é abundante em evidências
de que o homem toca fogo no Cerrado há pelo menos 10.000
anos.
Se
parece razoável supor que raios são o principal
agente causador de queimadas naturais, devemos considerar que
sua maior incidência está concentrada durante a estação
das chuvas, quando o teor de umidade na superfície do solo
e na vegetação está bem mais elevado. Freqüência,
intensidade e extensão das queimadas eram bem menores quando
o fogo no Cerrado ocorria apenas (ou predominantemente) devido
a causas naturais.
O fogo em alta freqüência tende a favorecer as fisionomias
mais abertas, como os campos, onde há espécies que
florescem e frutificam em abundância após as queimadas,
nos proporcionando belos espetáculos. Entretanto, o esplendor
pós-fogo proporcionado pela floração de algumas
espécies ofusca a gradual perda de diversidade e drástica
alteração na estrutura da vegetação
que ocorrem quando as queimadas são muito freqüentes.
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Plantas em floração menos
de dois meses após a passagem do fogo.
A: jalapa (Mandevilla illustris); B:
gravatá (Bromelia sp.)
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A:
inflorescência do coquinho-de-vassoura (Syagrus petraea)
danificada pelo fogo; B: árvore de
copaíba (Copaifera langsdorfii) com mais de 10m
de altura, remanescente de mata semidecidual em paisagem atualmente
savânica; C e D:
árvores mortas pelo fogo recorrente; E:
pequi (Caryocar brasiliese) rebrotando após queimada,
com ramos de rebrotas anteriores queimados.
A
expectativa, corroborada por estudos recentes, é de um
aumento na cobertura vegetal se diminui a freqüência
de fogo. Alta incidência de fogo (queimadas anuais ou bianuais,
p.ex.) tende a manter a vegetação em estádios
sucessionais mais iniciais. Não levar isto em consideração
pode nos induzir ao erro em trabalhos de caracterização
voltada ao manejo ou conservação da flora. São
muitos os locais onde poderíamos encontrar matas semideciduais
no lugar de atuais fisionomias de cerrado (savana), locais onde
haveria cerrados mais densos ou até cerradões, onde
hoje se vê campos e cerrados ralos. Isto nos é mostrado
claramente quando associamos flora, estrutura da vegetação
e histórico do fogo no local. Indivíduos
de espécies tipicamente arbóreas podem ser mantidos
como um arbusto de poucos centímetros de altura, se lhe
pegam fogo todos os anos.
Vivendo
no Cerrado há pouco mais de três anos e, por mais
de dois anos convivendo diariamente com a população
rural na região da Chapada dos Veadeiros, me convenci de
que a tese da “combustão espontânea”
na época seca não passa de lenda (salvo raras e
eventuais exceções). Atualmente, a principal causa
do fogo no cerrado não é descuido de fumante porcalhão
que joga bituca de cigarro ou fósforos pela janela do carro,
mas predominantemente agricultural. As queimadas têm sido
a técnica mais empregada como forma de “manejar”
lavouras ou pastagens naturais (formações mais abertas)
e plantadas. É a maneira preferida de “limpar”
o pasto ou a área que será cultivada no início
das chuvas. Como a queimada é realizada normalmente no
período da seca e muitas vezes não são adotadas
as medidas prévias de controle, sua intensidade e extensão
tende a ser aumentada. Há casos em que a frente do fogo
avançou sem trégua por mais de 100 km ao longo da
Serra do Paranã, borda leste da Chapada dos Veadeiros,
durante duas semanas.
Os
planos e ações de prevenção e controle
do fogo normalmente são desarticuladas, as campanhas publicitárias
de conscientização veiculadas nos grande meios de
comunicação parecem errar o alvo, pois são
focadas nos “motoristas descuidados”. O trabalho das
brigadas de incêndio torna-se inglório, pois, por
mais fogo que se apague mais fogo virá. Está claro
para mim que a maneira mais eficiente de combater as queimadas
é antes que elas ocorram, por meio de programas e ações
de educação em várias frentes. O que pode
ser feito com a formulação de políticas públicas
integradas, incorporando a questão das causas e efeitos
do fogo no Cerrado, que contemplem e articulem os diversos agentes
na região e suas respectivas unidades de gestão
(sejam propriedades particulares, unidades de conservação,
municípios, etc.). Ninguém vai resolver sozinho
o problema das queimadas, pois como se diz: o fogo anda e todos
temos vizinhos.
As
fotografias de efeitos do fogo sobre a vegetação
foram tiradas em novembro de 2004, na Reserva Natural do Patrimônio
Natural-RPPN Parque da Capetinga, do senhor Cid Queiroz, no município
de São João d’Aliança, Chapada dos
Veadeiros-GO, durante os trabalhos de campo para caracterização
da vegetação (realizada pela Escola Bioma Cerrado)
para o plano de manejo da reserva, coordenado e elaborado pela
Fundação Pró-Natureza, FUNATURA.
Referências
e sugestões bibliográficas:
-
Hoffmann, W.A. & Moreira, A.G. 2002. The Role of
Fire in Population Dynamics of Woody Plants. In Oliveira,
P. S. e Marquis, R. J., eds., The Cerrados of Brazil: ecology
and natural history of a neotropical savanna, pp. 159-177.
Nova York. Columbia University Press.
-
Ledru, M. 2002. Late Quaternary History and Evolution
of the Cerrados as Revealed by Palinological Records.
In Oliveira, P. S. e Marquis, R. J., eds., The
Cerrados of Brazil: ecology and natural history of a neotropical
savanna, pp. 33-50. Nova York. Columbia University Press.
-
Miranda, H. S. 2000. Queimadas de Cerrado: Caracterização
e impactos na vegetação. In Plano
de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais
do DF, pp.133-149. Brasília: Secretaria do Meio
Ambiente e Recursos Hídricos.
-
Miranda, H. S., E. P. Rocha e Silva, e A. C. Miranda. 1996.
Comportamento do fogo em queimadas de campo sujo.
In H. S. Miranda, C. H. Saito e B. F. S. Dias, eds., Impactos
de Queimadas em Áreas de Cerrado e Restinga, pp1-10.
Brasília: ECL/Universidade de Brasília.
-
Miranda, H. S., Bustamante, M. M. C. & Miranda, A. C. 2002.
The Fire Factor. In Oliveira, P. S. e Marquis,
R. J., eds., The Cerrados of Brazil: ecology and natural
history of a neotropical savanna, pp. 51-68. Nova York.
Columbia University Press.
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