segunda-feira, 22 de novembro de 2007 | Online

"A mata já era"

Depois dos madeireiros, agora o gado e a soja avançam rumo ao coração do Amazonas

José Maria Tomazela

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Balsa boiadeira transporta gado na travessia do rio Madeira, entre Humaitá e Apuí. Foto: José Luís da Conceição/AE
APUÍ (AM) - No rastro da ação dos madeireiros, a pecuária e a soja chegam ao coração da Amazônia. Agricultores e fazendeiros romperam o cinturão de proteção das unidades de conservação, que deveriam barrar o avanço da agropecuária, e rasgam a selva de um lado a outro, no sul do Amazonas, Estado com a maior área florestal ainda conservada. As queimadas para abertura de pastos e áreas de plantio transformam em deserto um corredor de quase 600 quilômetros, entre Lábrea, no Rio Purus, e Apuí, perto do Rio Aripuanã.

 

Boiadas de gado nelore são tangidas pela Transamazônica, num cenário tão devastado quanto o norte de Mato Grosso. Essa região do Amazonas integra o “arco do desmatamento” – por causa do alto risco de incêndios, foi incluída pelo Ibama no Plano Nacional de Combate ao Desmatamento. O preço baixo das terras, quase sempre griladas, e a abundância de recursos naturais atraem uma corrida de desbravadores. A descoberta de ouro e a abertura de um garimpo no Rio Juma, em Novo Aripuanã, aceleraram o processo de ocupação. Populações de cidades como Apuí crescem à taxa de 10% ao ano. Delas, madeireiros e agropecuaristas comandam seus negócios.

 

Com a ausência quase total de fiscalização, a extração ilegal de madeira se intensificou, até mesmo em áreas de reservas ambientais e terras da União. A instalação de assentamentos da reforma agrária sem estrutura adequada em plena floresta conduziu a mais desmatamento. Amazonas e Rondônia foram os únicos Estados da Amazônia Legal a registrar aceleração no desmatamento entre agosto de 2005 e julho de 2006, segundo o Ibama. A área desmatada já atinge 50% de municípios como Canutama, Guajurá e Humaitá.

 

Na região, a fumaça em permanente suspensão encobre o sol e obriga os motoristas a acenderem os faróis na BR-319, entre Porto Velho e Humaitá, enquanto trafegam por dezenas de quilômetros de matas calcinadas. O incêndio torra folhas verdes e reacende troncos carbonizados de outras queimadas. Nas margens desertas da estrada, os troncos queimados lembram que um dia ali houve uma floresta.

 

Na Fazenda Touro Sentado, à altura do Km 70, as chamas eram visíveis em 15 de setembro. De botas e chapéu de vaqueiro, o criador Najari Barbosa de Oliveira, de 63 anos, caminhava através da fumaceira, espalhando o fogo pelo mato seco. As labaredas lamberam as copas dos babaçus, o fogo invadiu a floresta, alastrou-se pela folhagem morta e, afinal, atingiu o caule de um frondoso angelim. A casca enrugou e, em horas, a copa murchou, sob o calor implacável. O tronco de uma árvore é capaz de resistir em pé a várias queimadas – mas o angelim logo é posto abaixo por uma motosserra.

 

Goiano de Anicuns, Oliveira é um forasteiro na porta de entrada do Amazonas. Mudou-se para a região há oito anos: “Eu era um sem-terra, criava boi para os outros. Agora, sou um fazendeiro.” Ele é dono de 1,5 mil hectares e já beira 1,4 mil cabeças de gado. O irmão mais novo, dono da fazenda vizinha, financiou a terra nova. Era tudo mata até a beira da estrada, explica Oliveira: “Ele disse: ‘Tem coragem de peitar essa mata?’ Eu respondi: ‘Ela já era’.”

 

Como a maioria dos pecuaristas da região, Oliveira comprou de um posseiro a licença de ocupação de terras devolutas, dada pelo Incra. Ganhou também autorização para derrubar parte da floresta. “Minha licença é para abrir 300 hectares, mas não derrubei nem isso.” O fogo impede que a mata volte – o que geraria o custo de uma nova derrubada. Ele não tem autorização para a queimada, mas não teme o Ibama: “Não tem problema, está tudo na lei.”

 

A partir de Humaitá, a pecuária avança rumo a Apuí, seguindo o traçado da Transamazônica. A soja vai atrás: para renovar as pastagens degradadas, os pecuaristas cedem áreas aos agricultores. Já se vêem, também, canaviais. O fogo e a motosserra levam a mata cada vez mais para longe da estrada. Em meados de setembro, ao longo dos 404 quilômetros de estrada de terra, cheia de buracos e atoleiros, entre Humaitá e Apuí, havia quase cem queimadas.

 

Segundo o analista ambiental Geraldo Motta, do Ibama, foi rompida a barreira formada pelo mosaico de reservas indígenas e ambientais,que o governo federal criou para deter o avanço: “Eles são desbravadores e seguem para o coração da Amazônia, o que é um grande risco para a floresta.”

 

A pecuária responde por boa parte da riqueza de Apuí, segundo o prefeito Roque Longo (PMDB). Ele, que também é pecuarista, diz que os criadores usam técnicas que intensificam a produção sem ampliar a área desmatada – inseminação, cruzamento industrial, uso de pasto rotacionado. O preço baixo das terras atrai à cidade agropecuaristas do norte de Mato Grosso, Rondônia e sul do Pará. “O governo vai ter de acordar e criar alternativas para o povo daqui não pensar só em desmatar”, diz.

 

A região não tem frigoríficos e o gado tem de ser levado em balsas até Manaus, pela hidrovia do Rio Madeira. O boiadeiro Alexandro Galvan, de 26 anos, que compra bois e os embarca em lotes para Manaus, acredita que entre Humaitá e Apuí já exista um plantel de meio milhão de cabeças. Nos trajetos em terra, os peões tangem as boiadas com berrantes como os do Pantanal. Já existem, na região, projetos agropecuários de grande porte, pertencentes a empresas, como o de uma rede de hipermercados, uma fazenda que engorda 3,5 mil bois perto de Humaitá.