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17 junho, 2010

Deliquência pirotécnica

Mal começou a seca, as queimadas já ameaçam e devastam.

Sérgio Abranches

A temporada de seca ainda nem começou. Na semana passada choveu. Mas quem corre a BR-040 do Rio para Minas, como eu fiz esta tarde, em muitos de seus trechos viaja dentro de uma nuvem de fumaça. A seca mal começou, mas as queimadas já se alastram pelos morros e pelas margens da estrada.

Logo depois de Itaipava, a quinhentos metros do posto de pedágio, a vegetação ardia dos dois lados da estrada. Chegamos ao posto numa nuvem de fumaça. O cheiro intenso de queimado. Durante alguns metros o ar era irrespirável. Daí em diante, o fumo denunciava queimadas em diversos pontos da estrada.

A partir de Ewbank da Câmara, até a entrada de Santos Dumont, havia fogo em toda a margem da rodovia. Onde não havia fogo, restavam brasas. A mata queimada e as cinzas mostravam que já houvera fogo em muitos trechos. Em outras palavras, marcas de vários dias seguidos desse insensato atear fogo em tudo que está seco, sem medir consequências.

Fogo intencional, sempre. Na chegada de Santos Dumont, as chamas traçavam o caminho de uma pessoa ou um pequeno grupo, que foi andando pela estrada, ateando fogo em cada moita ressequida que encontrava. Em vários pontos via-se o fogo se alastrando, já fora de controle. Ao chegar próximo à reserva que mantemos e que está rodeada por um aceiro de vários metros, como proteção contra essa deliquência contumaz, vi que um vizinho que havia roçado a horta no dia anterior fizera uma queimada. Interpelado disse que era fogo controlado. O desenho das chamas mostrava que, se quisesse, já não seria capaz de controlar o fogo, que ia alto, nas asas do vento outonal. Para nossa sorte, um rio separa nossas propriedades.

Essa região de Minas, entre Juiz de Fora e Barbacena, especialmente o trecho entre Ewbank da Câmara e Santos Dumont é reincidente. Toda temporada de seca é uma desolação. Uma amostra persistente da cultura do fogo, desse desvio pirotécnico da personalidade do Brasil rural. Se é que ainda se pode chamar essa região conurbada. O que tem é a mentalidade atrasada.

Mas já vi as pegadas e o trabalho dessa persona deliquente em muitas partes de Minas Gerais, do Pantanal mato-grossense, do Cerrado e da Amazônia.

Vi queimada nos sertões do Curvelo, nos fundos sertões das Gerais, na minha infância e pré-adolescência. Vi na Belém-Brasília, na minha adolescência. Vi em Brasília, devastando o Cerrado do Centro-Oeste, por toda a minha juventude e parte de minha vida adulta. Vi-vejo queimada sempre.

Já ouvi defesas da queimada. Conversa de subdesenvolvido. Aquela prosa sem nexo que tenta transformar a barbárie em sabedoria. Não é. A queimada é um erro, técnico e social.

Volto a citar Monteiro Lobato, a quem nenhum engenheiro agrônomo pode responder, tão técnica é sua literária descrição da queimada:

“ninguém cuida de calcular os prejuízos de toda sorte advindos de uma assombrosa queima destas. As velhas camadas de húmus destruídas; os sais preciosos que, breve, as enxurradas deitarão fora, rio abaixo, via oceano; o rejuvenescimento florestal do solo paralisado e retrogradado; a destruição das aves silvestres e o possível advento de pragas insetiformes; a alteração para pior do clima com a agravação crescente das secas… Isto bem somado, daria algarismos de apavorar; infelizmente no Brasil subtrai-se; somar, ninguém soma…”

Está em Urupês.

Enquanto tivermos queimadas, teremos educação cívica de menos, respeito de menos pela natureza, desinformação e deseducação afirmados como pseudo conhecimento.

As queimadas, hoje em dia me deixam enlutado. Mas aí, é uma história mais longa e mais triste.