A conquista do fogo (Kuikúru) Os índios não
tinham fogo. Kanassa resolveu procurar. saiu contornando uma
grande lagoa. Levava na mão fechada um vagalume. Cansado da
caminhada, resolveu dormir. Abriu a mão, tirou o vagalume
e pôs no chão. Como estava com frio, se acocorou para se aquentar
à luz do vagalume. De manhã Kanassa chegou na terra do mutum
e encontrou ele preparando enfeites de pena. O mutum, percebendo
a aproximação de alguém e reconhecendo Kanassa, disse: Ô Kanassa,
tem índio bravo aparecendo aqui. -Nada disso. Eu vim de lá
e não vi nada. Lá só tem o meu pessoal. Não há nada não. -Estou
fazendo este enfeite para quando índio bravo aparecer e eu
brigar com ele. -Onde você vai usar isso? -Na cabeça mesmo.
-Então ponha que eu quero ver. O mutum pôs o enfeite na cabeça
e saiu andando para Kanassa ver. Kanassa estendeu a mão na
direção do mutum e falou baixinho: "Esse enfeite não vai mais
sair da cabeça dele, vai ficar sempre assim". Depois disso
Kanassa saiu apressado. O mutum quis tirar o enfeite da cabeça
mas não conseguiu. E daí em diante todo mutum tem enfeite
na cabeça. Kanassa continuou andando até que chegou na terra
do cuiará, o jacarezinho do cerrado. O cuiará, vendo Kanassa,
disse: -Ô Kanassa, você está passeando? Olha, tem índio bravo
andando por aí, cuidado. -Não. Não tem nada, não. É só o meu
pessoal que anda por aí. O cuiará estava fazendo um ralo para
mandioca quando Kanassa perguntou: -Onde é que você vai carregar
esse ralo? -Nas costas. -Então ponha para eu ver. Ponha em
cima do rabo. Nas costas não fica direito. O cuiará, como
sugeriu Kanassa, pôs o ralo na cauda e saiu andando para que
o visitante visse. Kanassa estendeu a mão na direção do cuiará
e falou baixinho: "Esse ralo não vai mais sair do rabo dele.
Vai ficar toda a vida assim". Daí em diante todo cuiará tem
o rabo chato e áspero como ralo. Dito isso Kanassa saiu apressado,
deixando bravo o cuiará, que insistia em tirar o ralo da cauda.
Kanassa andava sempre com o vagalume na mão fechada. Era a
única luz que ele tinha. Kanassa continuou viajando até que
chegou num porto. Aí encontrou a sua parenta saracura. Kanassa
ficou contente com o encontro. Olhando a água, Kanassa perguntou
para a parente: -Como é que vou fazer para atravessar a lagoa?
acho que vou fazer uma canoa de barro. E assim fez. Feita
a canoa grande, embarcou ele mais a saracura. Fizeram remo
de barro e saíram. Lá adiante encontraram o pato , que vinha
com toda a família - mulher e cinco filhos - atravessando
também a lagoa, numa pequena canoa de casca de jatobá. encontraram-se
no meio da viagem, bem no centro da lagoa, na hora que estava
começando o banzeiro. Um pouco de água já estava entrando
na embarcação do pato. Kanassa gostou da canoa do pato mas
não disse nada, só pensou: "Eu vou dar um jeito de tomar essa
canoa". E falou: - Onde vão vocês? Eu estou com medo que essa
sua canoa afunde com toda essa gente. Se você quiser trocar,
eu troco. A minha é grande e firme. Essa aí está muito perigosa.
- Eu aceito e fico muito satisfeito. Você é muito bom, Kanassa
- respondeu o pato. O pato não reparou que a canoa de Kanassa
era de barro. Kanassa, ajudado pela saracura, pegou a canoa
de casca e saiu remando com força. Kanassa de longe esticou
o braço na direção da canoa do pato, soprou e disse: -Afunde
canoa. Afunde já. banzeiro, pode ficar duro. A canoa do pato
não resistiu e foi para o fundo. O pato, bravo, gritava. -Kanassa,
traga a minha canoa. Você mentiu para mim. Esta aqui não presta,
é de barro. O pato e sua gente tinham muito medo de água.
Não sabiam nadar. Quando a canoa começou a afundar eles gritaram
muito ,mas foram tentando em cima da água. De repente eles
perceberam que não íam para o fundo e começaram a gostar.
Hoje todo pato gosta de ficar na água. Kanassa e a saracura
chegaram ao outro lado da lagoa. Kanassa desenhou uma arraia
no barro da beira da água, mas como estava escuro ele não
viu e pisou no próprio desenho e por ele foi ferrado. Feito
isso a arraia fugiu para dentro dágua. Kanassa ficou danado
com a arraia e reclamou: - Eu acabei de fazer ela agora mesmo
e ela já me machucou. A culpa é do vagalume que não clareia
nada. Kanassa fez um gesto para jogar fora o vagalume mas
lembrou e disse para a saracura: - Sopre o fogo. - Que fogo?
Aqui não tem fogo coisa nenhuma. O fogo está lá com o seu
dono. - Quem é o dono do fogo? - É o ugúvu-cuengo (urubu-rei).
- Como é esse ugúvu-cuengo? - É um tipo de uruágui (urubu
comum), muito grande e difícil de ser encontrado. ele tem
duas cabeças. Só fica em lugar bem alto. E só desce para comer
gente. - Como é que a gente faz para segurar ele? - O único
jeito é matar um veado grande, um cervo, esconder embaixo
da unha dele até ele apodrecer. Quando o ugúvu-cuengo chegar,
o jeito é segurar a perna dele e só soltar quando ele der
o fogo. Kanassa resolveu seguir o conselho da saracura mas
não precisou matar o veado. Kanassa desenhou um veado grande,
entrou embaixo da unha e ali ficou escondido. Três dias kanassa
ficou dentro da carniça esperando o dono do fogo. Passado
algum tempo começaram a chegar os urubus comuns. Numa árvore
grande e seca sentou o ugúvu-cuengo. Os urubus, numa algazarra
enorme, gritaram para ele: -Pode vir. Está tudo bem. Estamos
só esperando você chegar para começar a comer. O ugúvu-cuengo,
desconfiado, lá de cima examinava a carniça, torcendo o pescoço
para enxergar melhor. Lá embaixo os outros continuavam a gritar:
- Pode vir. Está tudo bem. Vem logo que estamos com fome.
Ugúvu-cuengo então gritou: - Arrastem a carniça pra bem perto
do tronco. Os urubus obedeceram mas na hora de arrastar a
carniça eles viram Kanassa escondido. Kanassa falou baixinho:
- Psiu! Não falem nada. Façam ele vir até aqui. Os urubus
continuaram a insistir, até que o ugúvu-cuengo voou da árvore
alta até ao chão. Junto com ele veio uma grande claridade.
O ugúvu-cuengo no chão examinou bem a carniça, e, não vendo
nada, começou a comê-la. Mandou que todos comessem com ele.
O veado era grande e todos começaram a comer da parte traseira
para a dianteira. Quando chegaram na parte dianteira, Kanassa,
que estava escondido na unha do veado morto, agarrou a perna
do ugúvu-cuengo, ,e disse: - Ó anéto (chefe), eu estou pegando
você porque minha gente está precisando do fogo, e só você
sabe onde tem. Não tenha medo. Eu não vou fazer nada com você.
Eu só quero que você me ensine onde está o fogo. Você é o
dono do fogo. Ugúvu-cuengo ficou zangado só um pouquinho.Aí
ele chamou o filho, um passarinho preto, e falou: - Ó meu
filho, é preciso você ir buscar fogo para nós lá do céu. eu
estou seguro aqui pelo Kanassa que quer saber onde tem fogo.
Vá buscá-lo no céu. Ponha fogo numa embira de pindaíba e venha
devagar. Se voar depressa o fogo apaga. O passarinho foi buscar
o fogo lá no céu e veio descendo devagarinho para que ele
não apagasse. Mas só trazia brasa. quando ele chegou, o ugúvu-cuengo
mandou que ele soprasse a brasa e acendesse o fogo. Feito
isso ele deu a Kanassa, que na mesma hora soltou o ugúvu-cuengo.
Quando o fogo já estava aceso e quente, começou a chegar uma
porção de sapos saídos da água. - De onde apareceu isso? Quem
trouxe? - perguntaram todos. Os sapos tinham água na boca.
Na hora de ir embora, sopraram água no fogo e fugiram par
água. O fogo não chegou a apagar. Kanassa o reavivou rapidamente.
Outra vez saíram os sapos de dentro da água mas, antes que
chegassem perto do fogo, Kanassa os espantou. Ugúvu-cuengo
já tinha voado de volta para a árvore seca ali perto. De lá,
antes de ir embora para longe, ele disse: - Kanassa, quando
o fogo apagar, quebra uma flecha em pedaços, racha no meio,
amarra bem uma sobre a outra e firma bem no chão. Feito isso,
procura uma varinha de urucu e com ela, apoiando uma das pontas
nos pedaços da flecha, tira com força até o fogo surgir. Lá
do alto ugúvu-cuengo ainda gritou para Kanassa. Estava muito
longe, quase ninguém ouviu: - Procura um cipó da beira da
água, abre e deixa secar. é muito bom para ajudar a acender
fogo. Agora Kanassa precisava levar o fogo para o outro lado
do rio. Para isso chamou todas as cobras, venenosas e não
venenosas, para que levassem o fogo para o outro lado da lagoa.
As cobras entraram na água levando o fogo, mas no meio da
travessia uma a uma foi cansando e perdendo o fogo no banzeiro.
Só uma, muito ligeira, conseguiu chegar até o outro lado:
a itóto. Kanassa também atravessou a água e lá no outro lado
deu bebida, mingau e beiju para itóto - a cobra que conduziu
o fogo.
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