Coronel BM Júlio Cezar Rodrigues
As queimadas urbanas, ou tecnicamente, os incêndios em terrenos urbanos, assolam a Grande Cuiabá, notadamente no período que vai de junho a outubro, atingindo seu pico nos meses de agosto e setembro devido a estiagem prolongada.
Os incêndios em edificações e instalações são provocados na grande maioria dos casos por falhas humanas, falhas estas, ocasionadas pela não observância de normas básicas de prevenção. O importante é destacar que tais incêndios dificilmente são provocados intencionalmente, ou seja, por causas criminosas. O mesmo não é verdadeiro para os terrenos urbanos. A esmagadora maioria desses incêndios possue causas criminosas, isto é, são provocados deliberadamente. É exatamente sobre este ponto que discorreremos neste artigo.
Por que o cidadão, eticamente mediano, proprietário de áreas urbanas, portanto possuidor de patrimônio, cuja propriedade privada é garantida pelo Estado Democrático de Direito, descumpre tão acintosamente as normas postuladas que impedem a prática das queimadas? Esta pergunta poderia ser estendida a inúmeras outras mazelas sociais, contudo, nos deteremos neste objeto.
Mais do que uma forma de organização social, a democracia é um valor duramente conquistado ao longo de séculos. Os gregos antigos, quando da passagem do mito à razão, iniciaram o longo caminho da história da civilização humana em sua busca pelo conhecimento, partindo sempre de questionamentos. Por que as coisas são assim? De que é feito o mundo observável? O que é a realidade? Por que nos comportamos da maneira como nos comportamos? E, principalmente, o que é liberdade? É justamente a complexa questão da liberdade que repousará nossa tese sobre as causas dos incêndios em terrenos urbanos.
O conceito que nós, cidadãos do mundo contemporâneo, possuímos de liberdade está muito distante das antigas civilizações. Até o advento da doutrina cristã, a liberdade era um “status”, uma posição social conferida a algumas pessoas, basta lembrarmos que a escravidão, durante séculos foi considerada absolutamente normal. O cristianismo trouxe em seu arcabouço doutrinário o conceito de “livre-arbítrio”, portanto, a liberdade interna, pessoal, a capacidade de querer e não-querer alguma coisa. Cria-se a noção de autonomia do ser: o homem pode ser senhor da sua vontade. Parece que sempre foi assim. No entanto, guerras foram travadas em consequência dessa filosofia, que permitiu, em última instância, a criação do moderno conceito de Estado, propriedade privada e capitalismo.
A partir da Revolução Francesa em 1789, criam-se as bases para consolidação do Estado Moderno. As democracias começam a florescer em diversas nações do mundo. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), autor da obra “Do Contrato Social”, estende o conceito de “contrato social” para chegar a uma forma de associação segura entre os homens, as relações de poder e direito entre eles, Rousseau esclarece sobre a natureza inicial dos homens. Mostra os homens num estado anterior, chamado estado de natureza, e em um estado posterior, estado civil. Esse estado posterior marca a degeneração do primeiro, e a necessidade de estabelecer um contrato que irá reger a relação de soberania e poder entre os homens que seja legítima. Um pacto social, que ele mesmo cita, que estabeleça entre os cidadãos uma tal igualdade, que eles se comprometam todos nas mesmas condições e devam todos gozar dos mesmos direitos.
Viver em sociedade, portanto, deixar o “estado natural” e entrar para o “estado civil”, sem dúvida implica em renunciar parte da liberdade individual, em prol de uma liberdade coletiva.
No Brasil, findo o período de governo militar em 1995, dá-se início a volta ao regime democrático, culminando com a promulgação da Constituição em 1988. A Assembléia Nacional Constituinte, representando o povo brasileiro, decidiu que o Brasil seria uma “República Federativa formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”, constituindo-se em “Estado Democrático de Direito”.
O que significa este “Estado Democrático de Direito”? Infelizmente, talvez por falta de informação ou de um processo educacional mais eficiente, nossa população não tem a verdadeira compreensão, tampouco concebe as implicações em viver sob as condições de um estado de direito. Significa que estamos sujeitos apenas às imposições da Lei. Ninguém poderá ser constrangido a fazer ou deixar de fazer algo, salvo sob determinação expressa da lei. Também significa que é imperativo que o cidadão cumpra as leis do seu país, sob pena de rasgar-se o tecido social que permeia nossa nação.
Cumprir as leis! Eis um princípio básico para a harmonia no Estado Democrático de Direito. Cabe ao Estado desenvolver mecanismos eficientes de aplicação jurisdicional, fiscalização e auditoria para que as leis sejam cumpridas. É justamente por não haver este equilíbrio, por existir a “quebra” do contrato social que mergulhamos no caos da desordem, da violência de toda ordem, enfim, das mazelas sociais que desafiam a capacidade de organização do Estado e da Sociedade Civil.
As queimadas urbanas são a mais pura expressão da quebra do contrato social que teorizou Rousseou. A partir do momento em que o cidadão desconfirma as normas jurídicas, portanto pratica o ato proibido, e não é desconfirmado pela autoridade competente que acaba reconhecendo a desconfirmação, quando não aplica a sanção, instaura-se a quebra do estado de normalidade, enfraquecendo-se as instituições.
Esta situação pode ser evidenciada na grande maioria dos Municípios de Mato Grosso e do Brasil, a partir do momento em que o Poder Público Municipal está impotente para fiscalizar o cumprimento das normas que exigem a manutenção das áreas urbanas. O contrato social permitiu que o cidadão civilizado entendesse a necessidade de criar um ordenamento jurídico que organizasse o Estado e as relações entre os privados e também entre o Governo e os privados. Quando uma parcela dessa sociedade ignora este tratado e passa a agir impulsionada em uma pretensa liberdade individual que fere a liberdade de outrem, cria-se um estado de anormalidade que deve receber a intervenção do aparato estatal concebido para restaurar a harmonia necessária à convivência.
Aquele cidadão que utiliza-se da prática das queimadas urbanas (ação dolosa) ou não toma providências para evita-las (ação culposa), desconhece ou está alienado sobre as premissas básicas que asseguram a convivência em sociedade. Mais do que a ação do Estado, com seu poder de coerção, é preciso a ação de educação. Não uma educação alienada e dissociada da prática social, mas uma educação que estimule o raciocínio e a reflexão coerente com o mundo em que vivemos. Uma educação que mostre a interação da nossa civilização com nosso planeta (muito mais antigo que a raça humana), evidenciando o desequilíbrio ocasionada pela ação humana na natureza. Uma educação que permita ao indivíduo entender o conceito de liberdade em uma Estado Democrático de Direito e suas implicações.
Talvez dessa forma tenhamos uma geração que respeite o outro e que promova a adição de cláusulas ao contrato social que permitam o progresso ético e intelectual deste complexo homo sapiens.
Julio Cezar Rodrigues é coronel do Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Mato Grosso, bacharel em Ciências Econômicas e estudante do Curso de Direito da UFMT