Fumaça que vem de longe
Andreia Fanzeres
04.09.2005
Se um dia os telejornais
apresentarem, na previsão do tempo, as imagens do deslocamento
da gigantesca corrente de fumaça que sai da Amazônia e cobre
grande parte da região centro-sul do Brasil, talvez o público
comece a ter uma noção mais realista do quanto a floresta está
queimando. Executar essa idéia não é coisa de outro mundo. “É
possível sim”, garante Paulo Artaxo, físico da Universidade de
São Paulo (USP), minutos após uma palestra na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Com o aval de uma das
maiores autoridades brasileiras quando se fala nos efeitos das
queimadas sobre o clima, as televisões podem começar a cogitar
a novidade
Relevância é o que não falta nesse tipo de
dado, que pode ser tão fácil de mostrar quanto o deslocamento
de uma frente fria. Além desse cobertor de fumaça mudar
completamente a visibilidade e a qualidade do ar em boa parte
do país nos meses de seca nas regiões Norte, Sudeste e
Centro-Oeste, é a maneira mais simples de entender por que as
queimadas florestais são fonte de 74% das emissões de gases de
efeito estufa no Brasil – taxa que o coloca na quinta posição
do ranking dos países que mais poluem no mundo.
As queimadas emitem gases como o
monóxido e o dióxido de carbono, compostos nitrogenados,
metano e aerossóis (partículas sólidas em suspensão). Em
quantidades amazônicas, tornam-se ingredientes de uma mistura
extremamente prejudicial à floresta. Nos últimos 150 anos, a
concentração de alguns desses gases na atmosfera aumentou como
nunca. “Se pensarmos só no metano, por exemplo, existem
estudos que apontam que, nesse período, a concentração passou
de cerca de 400 partes por bilhão (ppb) para 3.700 ppb”.
Segundo o pesquisador, esse crescimento não tem mistérios. É
resultado da queima de combustíveis fósseis somada à alta taxa
de desmatamento mundial.
A destruição das florestas
está associada à quantidade de fumaça que o Brasil joga na
atmosfera. Quando o fogo não é ateado para limpar pastos,
funciona como uma espécie de funeral do desmate. Ele
geralmente não é colocado sobre a floresta densa, mas sobre o
que já foi cortado e está no chão perdendo a umidade para ser
mais facilmente incendiado. O que sobra é removido para a
semeadura de grãos ou capim. O problema é que, como qualquer
fogo, ele foge de controle e acaba se alastrando pela floresta
que ainda está em pé.
Uma nuvem qualquer se forma
quando existem na atmosfera vapor d’água e aerossóis, que
funcionam como núcleos de condensação. Esses núcleos crescem
e, na Amazônia, ao superarem o tamanho de 14 microns (0,0014
milímetros), a gota precipita. Mas quando há excesso de
aerossóis, como no caso das queimadas, a gota não cresce o
suficiente e não chove. Acontece um fenômeno que Paulo Artaxo
chama de supressão de chuvas. “A atmosfera fica alterada e as
verdadeiras nuvens de chuva são inibidas, não se formam mais”.
As “falsas” nuvens, as de fumaça, são assim. Demoram mais para
se dissipar, são mais brancas e refletoras, ou seja,
atrapalham a radiação solar, o que traz conseqüências à
produção de energia na floresta. Recentemente comprovou-se que
essas imensas nuvens influenciam também o clima.
Uma pesquisa do ”Experimento de Grande Escala da Biosfera -
Atmosfera na Amazônia (LBA/ Ministério da Ciência e
Tecnologia da qual participou o próprio Artaxo, levou
cerca de 400 cientistas a Rondônia entre os meses de agosto e
outubro de 2002 para realizarem uma série de estudos. Eles
registraram uma queda na temperatura no estado de 2 ºC, além
da redução de um quinto da luz solar e a diminuição de até 30%
na quantidade de chuvas – tudo isso em decorrência da fumaça
que, todo ano, muda sensivelmente a paisagem na cidade de
Ji-Paraná.
Tais mudanças, no entanto, não acontecem
apenas onde a floresta queima. “A redução das chuvas se
espalha pelo país na medida em que a alta concentração de
aerossóis é transportada pelas correntes de ar para outras
regiões”. Isso sem falar na poluição, que danifica até as
florestas que não sofreram com o fogo.
Além de mexerem
no comportamento da atmosfera, as queimadas alteram
profundamente outras esferas, como a biodiversidade de uma
região e os recursos hídricos – por falta de chuvas e por
deixar o solo desprotegido quando não existe mais cobertura
vegetal – de modo irreversível no curto prazo. “Na Amazônia,
boa parte dos nutrientes vem da chuva. Se você não tem chuva,
as florestas saem perdendo”, diz Artaxo. Segundo ele, existem
estudos mostrando que áreas de matas devastadas e abandonadas
no sul do Pará há cerca de 30 anos não conseguem até hoje se
regenerar plenamente. “A biomassa que renasce não chega a 40%
do que era antes e a diversidade não supera os 25%”.
Artaxo não quer ser chamado de
catastrofista, mas apresenta dados nem um pouco animadores.
Uma pesquisa do centro de previsão do tempo do instituto de
meteorologia do Reino Unido, o Hadley Centre, previu que, se as taxas de
desmatamento mundiais forem mantidas, entre 1990 e 2090 haverá
uma mudança de algo entre 10 a 12 °C na temperatura do solo.
Ainda segundo o instituto, no ano 2100 restarão no máximo 20%
da cobertura original da Amazônia, num cenário otimista.
Atualmente, 18% da região já foram completamente devastados.
A culpa, segundo Artaxo, é do governo, que não
acompanha os avanços tecnológicos que permitem aos
pesquisadores brasileiros monitorar em tempo real o surgimento
das queimadas. Na realidade, não só quem entende do assunto,
mas qualquer internauta curioso. No site do Centro de Previsão do Tempo e Estudos
Climáticos do Instituto Nacional de Pesquisas Espacias
(Inpe), é possível saber, entre outras coisas, quantos
focos de incêndio existem neste momento em cada estado
brasileiro ou em cada país da América do Sul, além de sua
localização e de números acumulados. “Temos equipamentos e
cientistas aptos a prever áreas até com risco de fogo. Pena
que o governo não consiga realizar a última parte desse
trabalho, que é executar as ações e impedir a devastação”,
critica Artaxo. Para ele, não existe política efetiva de
controle de queimadas no Brasil.
Isso se torna ainda mais grave quando
alguns estados decretam proibição a todo tipo de queimada no
período de estiagem e, mesmo assim, centenas de focos são
registrados. “A Amazônia não pega fogo sozinha por causa da
altíssima umidade, inclusive nas áreas que são consideradas
menos úmidas, como o norte de Mato Grosso”, explicou Artaxo.
Se até agora esse tema não tem conseguido ganhar o interesse
da sociedade, a estratégia da corrente de fumaça na TV talvez
possa impactar e revelar mais do que a dimensão da área
consumida pelo fogo. Quem sabe mostre também a dimensão da
impunidade.
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