Jornal da Ciência (JC E-Mail) ===================================================================== Edição 2059 - 21 de junho de 2002 - Notícias de C&T - Serviço da SBPC ===================================================================== 12 - A ciência ou o dedo de Deus?, artigo de Washington Novaes Washington Novaes é jornalista especializados em questões ambientais e já foi secretário de C&T e Meio Ambiente do Distrito Federal. Artigo publicado em 'O Estado de SP': A divulgação do índice de desmatamento na Amazônia em 2000/200l (15.787km2; no período anterior, foram 18.226 - menos 13,4%) suscita novas discussões. Devemos regozijar-nos pela redução? Devemos continuar escandalizados? Esses números refletem a realidade ou ela continua encoberta pela dificuldade de os sistemas de aferição captarem o que está acontecendo na área do chamado desmatamento seletivo, em que as madeireiras só tiram o que lhes convém, mas abrem caminho para o desaparecimento do que fica? Parece razoável entender que mesmo o nível atual, reduzido, é inaceitável. Como lembra o cientista Carlos Nobre, coordenador do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que acompanha por satélite esse desmatamento, a média anual, acima de 15 mil km2, que se observa ao longo de uma década, parece ser a média 'normal' de desmatamento. E é absolutamente desproporcional à participação do setor madeireiro no PIB nacional, juntamente com a agropecuária na Amazônia. A irracionalidade estaria demonstrada pela própria área desmatada e já abandonada, cerca de um terço dos quase 600 mil km2 de floresta já removidos (entre 13% e 15% do total). Também é preciso levar em conta outro mito desfeito. Segundo o Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), nada menos que 86% da madeira amazônica se destina ao mercado interno, e não ao externo. Tem relação com políticas, planejamentos e ações internos - não externos. A deficiência de fiscalização beneficia internamente. E se torna dramática quando se lembra, como dizem as pessoas do povo em Manaus, que o Ibama tem menos fiscais para 3,7 milhões de km2 de floresta (43,5% do território nacional) que um único hotel de Manaus tem de funcionários para atender aos turistas. Mais complicado ainda, como revelou levantamento divulgado neste jornal (12/6) por Liana John, com base em pesquisa da Amigos da Terra e do Institute for Environment and Development (IIED), três quartos dos desmatamentos são legalizados por autorizações (corretas? falsificadas?) e mais 5%, por planos de manejo. Seja por que caminho for, chega-se a um ponto delicado. Lembra o professor Carlos Nobre que vários estudos já mostram que há mudanças localizadas significativas ocorrendo por força de desmatamento e mudanças no uso da terra - na Amazônia, na mata atlântica, na antiga área de floresta do Rio Doce. Estarão essas mudanças determinando também mudanças no ciclo hidrológico, menor vazão nos rios, principalmente na época da seca? Esse temor foi manifestado na recente crise no abastecimento de energia elétrica, mas não havia dados consistentes para julgar. Só agora a Agência Nacional de Águas começa um levantamento. Mais grave ainda, o Brasil não sabe o que pode acontecer em função de mudanças climáticas. país tropical que é, habituado a temperaturas mais altas, não chega a notar uma elevação de 0,4 a 0,5 grau centígrado já registrada na média dos últimos cem anos. Sem saber, não é capaz de prever o que pode acontecer em matéria de chuva, de evaporação, de regime hidrológico. Os cenários traçados para a América do Sul, a partir de estudos no Hemisfério Norte, são ainda precários. E não é possível saber o que acontecerá com a agricultura em diferentes partes do país, se haverá mais geadas, mais secas, mais enchentes, mais veranicos que afetam as culturas. É uma questão decisiva para a agropecuária. Mas não apenas para ela, nem só para o Brasil. Uma das hipóteses já em estudo é a de que mudanças climáticas globais poderão reduzir dramaticamente a capacidade da Amazônia de absorver mais carbono do que emite, por causa da oxidação da matéria orgânica no solo, que liberaria uma quantidade adicional de carbono capaz de desequilibrar os níveis atuais (mais absorção que emissão). Seriam centenas de milhões de toneladas de carbono emitidas a mais por ano. Essa e outras hipóteses estão sendo testadas num estudo conjunto do Inpe, do Instituto de Pesquisas da Amazônia, da Embrapa e mais 35 instituições brasileiras e 14 de outros países amazônicos, no Experimento de Grande Escala da Atmosfera/Biosfera na Amazônia, que reúne mais de 300 cientistas para estudar em 17 áreas experimentais os ciclos da água, do carbono, dos nutrientes e as conseqüências das modificações. Será um instrumento decisivo para futuras políticas públicas e planejamentos privados na região. Mas, antes mesmo que se conheçam esses resultados, o Brasil precisaria mudar suas posições. Como diz o professor Nobre, nestas vésperas da conferência Rio+10 deveria dar exemplo, reduzir suas emissões (embora não esteja obrigado pela Convenção do Clima). E a maior possibilidade está exatamente na eliminação do desmatamento de florestas tropicais e de queimadas. Até porque estudos da Embrapa já demonstraram que não é preciso derrubar uma só árvore para aumentar em 50% a produção na agricultura e na pecuária. Basta vontade política. Se não for pelo conhecimento, será preciso esperar que um susto com mudanças climáticas (como aconteceu com a questão do ozônio) seja capaz de mudar os rumos (embora no momento do susto as conseqüências dramáticas já possam ser irreversíveis), ou em fatores fora do mundo da razão. Cientistas costumam lembrar, a propósito, o que aconteceu exatamente na questão da camada de ozônio. Quando os químicos começaram a pesquisar para produzir os CFCs (aerossóis) na década de 1920, partiram do cloro e do bromo. Não se sabe por que, escolheram o cloro, embora os testes fossem equivalentes para os dois elementos. Se houvessem escolhido o bromo, os efeitos na camada de ozônio teriam sido muitas vezes mais graves e terríveis - sabe-se hoje. Para muitos cientistas, foi 'o dedo de Deus'. (O Estado de SP, 21/6/2002) ====================================================